Os Golpes de Estado no Brasil, na Argentina e no Chile e a Interferência dos Estados Unidos
A política dos países sul-americanos sempre foi tema de preocupação dos políticos e dos think tanks dos Estados Unidos, sobretudo a partir da Revolução Cubana, que depôs o ditador Fulgêncio Batista, corrupto e títere norte-americano, e tomou o poder naquela ilha em 1959, com os irmãos Fidel e Raul Castro, e Che Guevara.
As mais importantes tomadas de posição do novo governo cubano foram (i) a a a declaração de que o país adotava um regime socialista, e (ii) a expropriação de bens de investidores norte-americanos, e de cubanos que deixaram o país. Em virtude dessas expropriações, o governo norte-americano decreta, em 1960, a proibição de comércio de seus cidadãos com Cuba. O crescendo de retaliações recíprocas prossegue, com a malograda tentativa de invasão da Baía dos Porcos, a partir de Miami. Em 1961, os Estados Unidos rompem relações diplomáticas com Cuba. Segue-se o óbvio: a aproximação de Cuba com a União Soviética, que passa a ser a maior (e depois a única) compradora do açúcar cubano, e a fornecer ajuda financeira à ilha. No ano seguinte, acontece a Crise dos Mísseis soviéticos, instalados em Cuba, o que, naturalmente, foi visto pelos norte-americanos como ameaça a sua segurança. Somente uma hábil negociação diplomática direta entre Estados Unidos e União Soviética impediu que se chegasse à ameaça de uso de armas nucleares, e resultou na retirada dos mísseis.
Após esses acontecimentos, Cuba ficou marcada como um símbolo da então chamada “ameaça vermelha à democracia nas Américas”. Não era bem assim, e o continente nunca esteve ameaçado de qualquer tipo de invasão por forças ligadas à União Soviética. Mas era a Guerra Fria, que se travava também com a divulgação de mitos e falácias, que hoje chamaríamos de fake news.
Mas, fosse a ameaça real ou fictícia, fato é que a política de relacionamento dos Estados Unidos com a América do Sul passou a ser fortemente dominada pelo anticomunismo, inserindo-se no mesmo quadro ideológico (Doutrina Truman) que levou às intervenções americanas nas Guerras da Coreia e do Vietnam, ambas perdidas pelos Estados Unidos, malgrado seu espetacular aparato bélico. Esse relacionamento mudou para melhor na Presidência Jimmy Carter, regrediu no desastroso Governo Trump, e retornou à civilidade na Presidência Biden.
Voltemos, pois, à América do Sul.
O Brasil
O Brasil, com o abrupto fim da brevíssima Presidência Jânio Quadros (apenas sete meses da posse à renúncia), passa por uma sublevação militar. Era o mês de agosto de 1961, e o Vice-Presidente João Goulart, apelidado Jango, rico estancieiro gaúcho, filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro, achava-se em viagem à China. As Forças Armadas, cujas lideranças sofriam forte influência de suas homólogas norte-americanas, temerosas de que Jango, na Presidência, pudesse representar uma inclinação do país à esquerda, recusam-se a permitir a posse do Vice. Ele foi proibido pelos militares de desembarcar no Brasil, sob ameaça de prisão (ilegal, obviamente), o que o obrigou a pousar no Uruguai, à espera da resolução do impasse.
O motivo apontado pelos militares para que Jango não tomasse posse foi o fato de ele ser ligado ao sindicalismo e às forças políticas de esquerda, o que segundo os militares, abriria o caminho para a implantação do comunismo no Brasil. Boa parte dos líderes militares defendia a permanência do presidente interino, Ranieri Mazzili, à frente do governo até a realização de novas eleições. Mas as Forças Armadas estavam ainda divididas sobre a manutenção das prerrogativas constitucionais que garantiam a posse de Jango. O principal defensor da manutenção da legalidade no exército era o general Teixeira Lott. Ao mesmo tempo, manifestações populares, ocorridas principalmente nos Estados do Sul, no Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, também pediam a posse de Jango.
O acirramento político se intensificou com o posicionamento a favor da posse pelo comandante do III Exército, no Rio Grande do Sul, general Machado Lopes. A posição também foi tomada pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Brizola foi eleito pelo PTB, era cunhado de Jango e seu provável herdeiro político. Brizola organizou o “Movimento de Resistência Democrática”, além da “Voz da Legalidade”, cujo objetivo era apoiar o Vice-Presidente. A proposta de Brizola era a resistência armada contra a tentativa de golpe dos setores do exército que impediam a posse. Com esta ameaça de cisão popular, as forças políticas conseguiram encontrar uma forma de garantir a posse de Jango. Em 2 de setembro de 1961, o Congresso Nacional instituiu por emenda constitucional o sistema parlamentarista de governo no Brasil, que deveria ser referendado ou não em plebiscito a ser realizado em 1965.
Esta amarração política garantiu a posse de Jango, mas como um presidente com poderes reduzidos. O chefe do executivo seria um primeiro-ministro indicado pelo presidente e aprovado pelo Congresso. O frágil sistema parlamentarista brasileiro teria 3 primeiros-ministros entre 1961 e 1963, e não conseguiu resolver a crise política, o que se somou ao aprofundamento dos problemas econômicos do país. A solução encontrada foi a antecipação do plebiscito para janeiro de 1963. Nele, a população votou em sua grande maioria pela volta do presidencialismo, dando novamente os poderes ao Presidente da República. Esta situação abriria caminho para Jango efetuar as reformas sociais com as quais havia se comprometido, aprofundando a crise que levaria ao golpe militar de abril de 1964.
Os Estados Unidos estavam então sob a presidência de Lyndon Johnson, muito menos liberal do que John Kennedy. Os líderes políticos americanos mais influentes viam com desconfiança a presidência de Jango, suas ligações com os sindicatos (que sempre haviam apoiado o mentor político de Jango, o falecido Presidente Getúlio Vargas) e um discurso de matiz trabalhista.
Foi assim que, em março de 1964, o então Embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, enviou a seu governo em Washington um telegrama tão curioso quanto bombástico, cuja tradução transcrevemos a seguir:
“"Para minimizar a possibilidade de uma guerra civil prolongada [no Brasil] e garantir o apoio de um grande número de adeptos, seria crucial a nossa capacidade de demonstrar apoio e uma certa exibição de força com grande rapidez. Para esse fim, e de acordo com nossas conversas em Washington no dia 21 de março, uma possibilidade parece ser o rápido envio de uma força-tarefa naval para manobras no Atlântico Sul, trazendo-a a uma distância de dois dias de Santos”
Na verdade, não existia no Brasil, nem de longe, a ameaça de guerra civil a que se referia o Embaixador. Levantamos aqui uma hipótese para a origem dessa correspondência. Estava então no Brasil – oficialmente sem função, mas na verdade conspirando com os militares – o General americano Vernon Walters, velho amigo do General Castello Branco, então Chefe do Estado Maior do Exército. Castello seria a seguir o líder ostensivo do Golpe Militar que deporia Jango, e o primeiro Presidente da República da Ditadura Militar Brasileira. O General Walters já desfrutava então de grande prestígio na comunidade de inteligência norte-americana, e viria a ser Vice- Diretor da CIA entre 1972 e 1976. É mais que possível que o telegrama – alarmista, porque não dize-lo – de Lincoln Gordon fosse inspirado por Vernon Walters, este envolvido profundamente na conspiração que preparou o Golpe de 1964. Tudo para estimular a ajuda americana aos golpistas.
Seguiu-se a ao Golpe uma sucessão de governos presididos por oficiais generais do Exército, sempre escolhidos por seus pares (depois de Castello, Costa e Silva, Emilio Medici e João Figueiredo), e “referendados” medrosamente pelo Congresso Nacional. Em 1964, a vigência da Constituição foi interrompida, substituída por Atos Institucionais, cujo número chegou a 5. Este, o de número 5, de 1968, constituiu a maior violência contra o Estado Democrático de Direito praticado pela Ditadura Militar.
Mas não nos iludamos, desde o governo Castello Branco, a tortura foi livremente praticada no país, por militares e por policiais sobre seu comando, contra quem quer que fosse, suspeito de discordar do governo, ou inimigo pessoal, por razões quaisquer, dos apaniguados do regime. Neste sentido, escreveu Elio Gaspari, celebrado jornalista e historiador:
“Os acontecimentos posteriores a 1968, quando o governo assumiu sua feição ditatorial por meio do AI-5, fizeram com que se desse pouca importância à natureza da violência surgida a partir de 1964 e como ela foi enfrentada pelo governo Castello Branco. Ali estava a gênese da tortura...”
(in “arquivos da ditadura.com.br/documentos/galeria-tortura-governo-castello-branco”)
Durante a ditadura, Juízes, mesmo do Supremo Tribunal, foram sumariamente afastados, efetuadas prisões arbitrárias, torturas bárbaras impostas aos presos, centenas de “desaparecidos” cujo fim se desconhece, assassinatos, como os do Deputado Rubem Paiva (jogado de um avião militar), do estudante Stuart Angel (arrastado por um jipe dentro de um quartel, até a morte), do jornalista Wladimir Herzog (simulacro de suicídio, facilmente desmentido), e muitos outros, foram cometidos pelas ditas “forças de segurança”. A rebelião no Araguaia foi reprimida com o massacre e a ocultação dos cadáveres dos jovens rebelados. Já no ocaso da ditadura, um falso atentado contra um espetáculo popular no Rio Centro acabou por vitimar os seus próprios executores, um capitão e um sargento do Exército.
Algumas medidas modernizantes da Administração e das finanças foram tomadas durante a ditadura: criação do Banco Central, do Banco Nacional da Habitação para financiar moradias populares, reforma da Lei das S.A. e do Mercado de Capitais.
Entretanto, a ditadura, ao seu término já nos anos 80, entregou um país devastado pela inflação, politicamente polarizado, com a educação e o sistema de saúde pública em frangalhos, e marcado, perante o cenário mundial, como mais uma república bananeira.
No Brasil, ao contrário da Argentina – como se verá mais adiante - os governantes militares e seus sequazes jamais foram levados a julgamento por seus crimes.
Em 1988, foi promulgada nova Constituição, de orientação democrática, assegurando aos cidadãos grande elenco de direitos políticos e sociais. A implementação eficaz desses últimos reclamaria, entretanto, uma disponibilidade de recursos que o país não alcançou até hoje.
Depois de sucessivos governos democráticos de orientação centrista e centro-esquerdista populista (no primeiro caso, José Sarney, o breve Fernando Collor, afastado por impeachment fundado em atos de corrupção, e no segundo caso Luis Inácio Lula da Silva, o Lula, fundador do Partido dos Trabalhadores, e sua indicada Dilma Rousseff). O impeachment desta última, por suposta manipulação da contabilidade pública, levou a uma reviravolta política nas eleições de 2018, em que se elegeu um ex-capitão do Exército, desconhecido deputado federal, Jair Bolsonaro, que prometia um governo sem corrupção e de orientação direitista.
O governo de Bolsonaro, findo em 2022, foi na verdade repleto de escândalos, armamentista, mostrou-se aliado a Donald Trump nos Estados Unidos, e, com sua ideologia neoliberal, arrasou a economia do país, e lidou com extrema incompetência com a pandemia de Covid 19, que levou à morte mais de 700 mil brasileiros.
A Argentina
Enquanto isso, na Argentina, nossos vizinhos experimentaram duas ditaduras. A primeira, candidamente autodenominada Ditadura Militar Argentina, instalou-se com o Golpe de Estado de junho de 1966, e permaneceu no poder durante sete anos, e três “Presidências” de ditadores, todos oficiais generais (Juan Carlos Ongania, Roberto Marcelo Levingston e Alejandro Lanusse). O primeiro adotou medidas econômicas de feição liberal, destinadas a atrair grandes grupos empresariais estrangeiros, e, ao mesmo tempo, total sufocação das liberdades civis, em nome de um anticomunismo tosco e obscurantista. As celebradas universidades argentinas foram perseguidas, estudantes espancados, o que provocou uma grande fuga de talentos para o exterior. Ongania foi deposto por Roberto Marcelo Levingston, que ficou no poder menos de um ano, deposto por Alejandro Lanusse. Os três governos foram desastrosos, e seu fim abriu espaço à volta do Peronismo em 1973. Juan Domingo Perón, velho líder populista, não assumiu desde logo a Presidência, mas tutelou o Presidente Hector Cámpora. Perón foi o segundo Presidente desse período, de 1973 a 1974, quando morreu no poder, e foi sucedido por sua terceira esposa, a Vice-Presidente Maria Estela, uma ex-dançarina, apelidada de Isabelita. Esse período de governos peronistas durou apenas três anos, e terminou em 1976 com a deposição de Isabelita Perón por uma junta militar das três Forças Armadas. Durante o governo de Isabelita, a inflação foi controlada, novas indústrias se instalaram no país, uma nova central nuclear foi construída, além de quatro novas barragens. Novas leis sociais ampliaram os direitos dos trabalhadores, o que lhe rendeu forte apoio popular.
Não obstante o relativo êxito do governo de Isabelita, na verdade revertido ao final de seu mandato, um golpe de estado foi contra ela perpetrado por oficiais generais das três armas, em março de 1976, e o General Jorge Rafael Videla indicado pela Junta para presidir o país.
Sobrevieram a debacle econômica, a desindustrialização, o endividamento externo, e o Terrorismo de Estado. Há registros de mais de trinta mil assassinados pelo regime, além das vítimas de tortura que lograram sobreviver, e vieram a dar testemunho dessas atrocidades em célebre julgamento ocorrido em 1985.
Na economia, os militares, deliberadamente ou por incompetência, levaram à desindustrialização do país, uma pequena e efêmera queda da inflação, que logo voltou a subir, e a esmagar os salários. As taxas de inflação atingiram níveis astronômicos, o desemprego crescente, quebra de bancos, colapso do sistema cambial, enfim, o caos, na outrora pujante economia argentina.
Os militares, na realidade, cuidaram apenas de perpetuar-se no poder, sufocando com extrema violência qualquer oposição, e cometendo sucessivas e constantes violações dos direitos humanos. Afinal, em 1981 o ditador Jorge Videla renunciou, assumindo o general Roberto Viola, e depois o General Leopoldo Galtieri.
Veio aí a loucura final: Galtieri declarou guerra ao Reino Unido, em abril de 1982, reivindicando a soberania sobre as Ilhas Malvinas. Fragorosamente derrotado na guerra, o regime passou por mais um general ditador, Reynaldo Bignone, que promulgou a Lei da Auto Anistia, para impedir o julgamento dos militares por seus crimes, e decretou a destruição de todos os arquivos que comprometessem o sistema.
Finalmente, foram realizadas eleições gerais, e eleito Presidente o democrata Raul Alfonsín. A Junta Militar assinou, em 6 de dezembro de 1983, a sua própria dissolução.
Em 2010, o ex-presidente Jorge Videla e outros militares foram condenados à prisão perpetua. Um filme argentino recente, “Argentina 1985”, ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, conta a história desse célebre julgamento, que fez justiça às vítimas da ditadura de 1976.
Cabe registrar que o estrategista político Henry Kissinger fez uma visita à Argentina em 1978, encontrou-se com o ditador Jorge Videla, e, segundo o jornal The Guardian, elogiou “os esforços argentinos em combater a subversão”. Documentos sobre essa visita e outras trocas de correspondência entre os Estados Unidos e a ditadura argentina tiveram o sigilo levantado recentemente pelo governo americano, e foram entregues ao Presidente argentino Mauricio Macri em visita feita ao país por John Kerry, então Secretário de Estado.
Esses documentos dão conta de que, em 1977, Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai, então sob ditaduras de extrema direita, tentaram estabelecer um bloco para confrontar a política norte-americana de então, de defesa dos direitos humanos (Presidência Carter). É o que consta de um Memorando de 1978, firmado por Robert Pastor, membro do Conselho de Segurança Nacional americano.
O Chile
Documentos do National Security Archives dos Estados Unidos (in “nsarchive2.gwu.edu”) cujo sigilo foi levantado na data do 40o. aniversário do Golpe de Estado do Chile, e que foram objeto de acurado estudo do Diretor do Nacional Security Archive dos Estados Unidos, Peter Kornbluh, publicado em seu livro “The Pinochet File: A Declassified Dossier on Atricity and Accountability”, ed. The New Press, 2013, disponível para compra em www.amazon.com.br), mostram com meridiana clareza e abundância de provas, a intervenção norte-americana no planejamento e execução do Golpe de Estado, desde a eleição que levou Salvador Allende à Presidência do Chile, e antes mesmo de sua posse. Inúmeros memorandos do governo Nixon, assinados por Henry Kissinger – o artífice do Golpe – e até mesmo a transcrição de uma conversa telefônica entre Nixon e Kissinger. Existe ali também, transcrição de reunião entre o Secretário de Estado dos EUA, o embaixador do Chile nos EUA, e o Presidente pós- Golpe, General Augusto Pinochet, onde são discutidas as incontáveis violações aos direitos humanos cometidas pelo governo deste último, e a má repercussão desses atos no cenário europeu, assim como foi ali reiterado a Pinochet o incondicional apoio do governo estadunidense.
Recomendando a leitura do livro acima citado, mesmo assim não podemos deixar de lembrar aqui algumas das mais notórias atrocidades da ditadura chilena, como o uso do Estádio Nacional do Chile como campo de concentração, tortura e assassinato de presos políticos, o estabelecimento de vários outros campos de concentração e tortura. Só no estádio, aglomeraram-se 40 mil presos sem processo nem culpa formada, pelo menos 3.000 deles assassinados por militares na frente dos demais prisioneiros, à luz do dia. Dentre eles estava o poeta e cantor Victor Jara, cujo martírio foi depois documentado na linda canção intitulada “Kissinger”. Tudo com a plena ciência e apoio do Governo Nixon. Por dever de justiça, registre-se que o top deputy de Kissinger no National Security Council dos EUA, Viron Vaky, corajosamente opô-se a esse apoio, dizendo-o, por escrito, “patentely a violation of our own principles and policy tenets”. A infamous CIA ajudou o governo chileno da estruturação da sua polícia secreta, a não menos infame DINA, responsável pelas prisões sem julgamento, torturas e assassinatos de cidadãos chilenos.
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